Anvisa analisa resultados de consulta pública sobre proibição de cigarros eletrônicos
Entre as 13.930 participações, 37% foram favoráveis a manter esses dispositivos proibidos no país, e… [[{“value”:”
LEONARDO ZVARICK
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) divulgou recentemente a lista das contribuições recebidas em consulta pública sobre a proibição de cigarros eletrônicos no Brasil. Entre as 13.930 participações, 37% foram favoráveis a manter esses dispositivos proibidos no país, enquanto 59% tiveram outro posicionamento.
A consulta é uma das etapas finais de processo de revisão regulatória iniciado em 2019. Após coletar estudos e evidências científicas de diversas instituições sobre potenciais riscos à saúde dos chamados DEFs (dispositivos eletrônicos de fumar), a agência recomendou que a proibição, em vigor desde 2009, seja mantida.
A consulta foi aberta em seguida, no final do ano passado, para coletar novas contribuições da sociedade antes da tomada de decisão. Participaram majoritariamente pessoas físicas de formações diversas, mas também associações médicas, órgãos governamentais e empresas do setor regulado.
Entre os profissionais de saúde, 61% fizeram avaliação positiva da proibição, enquanto 32% disseram que os efeitos foram negativos. Considerando as participações do setor regulado -incluindo a indústria do fumo e variados comércios -, 41% foram a favor da manutenção da norma, enquanto 44% discordaram ou fizeram ressalvas.
A agência esclarece que a consulta pública não é um instrumento opinativo ou de votação, mas uma oportunidade para aprimoramento do texto proposto. As contribuições serão analisadas individualmente e podem ser incorporadas à proposta de norma em elaboração, que então será votada pela diretoria colegiada. O órgão não tem prazo para se posicionar.
“Não se trata de saber qual opinião é mais ou menos frequente, mas de saber onde há mais substrato para a tomada de decisão. O órgão que faz a consulta busca que diferentes opiniões aflorem juntamente com suas respectivas justificativas”, explica o sanitarista Gonzalo Vecina Neto, ex-presidente da Anvisa e professor da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo). Pessoalmente, o médico defende que a proibição dos DEFs seja mantida.
Em relatório publicado no final do ano passado, a área técnica do órgão regulador recomendou, além da proibição, que o poder público adote medidas para fiscalizar o comércio e entrada ilegal desses produtos no país, bem como promova campanhas educativas para desestimular o seu consumo.
A análise levou em conta pareceres independentes de instituições como USP (Universidade de São Paulo), Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) e universidades Johns Hopkins e da Califórnia, nos Estados Unidos. Houve ainda consultas à indústria do tabaco, principal setor regulado pela norma.
Vastas evidências científicas comprovam que os DEFs, assim como os cigarros convencionais, causam danos cardíacos, respiratórios e neurológicos no usuário, além de dependência devido à presença elevada de nicotina.
Um estudo realizado na China e publicado recentemente pela revista Scientific Reports concluiu que fumantes de cigarros convencionais e eletrônicos estão sujeitos ao mesmo risco para desenvolvimento de doença pulmonar obstrutiva crônica. O risco cresce ainda mais entre aqueles que fazem uso dual, ou seja, fumam tanto o cigarro convencional quanto o eletrônico.
A médica Stella Martins, especialista em dependência química do Programa de Tratamento do Tabagismo do Incor (Instituto do Coração), afirma que os cigarros eletrônicos e os aerossóis liberados por eles contêm diferentes substâncias químicas comprovadamente carcinógenas. “Isso significa que não existe nível seguro de exposição a essa substância, mesmo que seja uma redução de 99,9%”, explica.
Segundo a especialista, que já realizou diferentes estudos analisando a composição dos DEFs encontrados no Brasil, o nível de nicotina nesses dispositivos é cada vez maior, com efeitos de longo prazo ainda desconhecidos.
Os aditivos que dão sabor aos cigarros eletrônicos também são motivo de preocupação, pois além de oferecer potenciais riscos à saúde, estimulam o consumo por não fumantes e, principalmente, por menores de 18 anos.
“Nós ainda não sabemos o que vai acontecer no futuro com essa população de adolescentes que usam o cigarro eletrônico com nicotina sintética. Essa é uma questão de saúde pública muito grave”, diz a médica.
Segundo pesquisa do Ipec (Inteligência de Pesquisa e Consultoria), o consumo dos cigarros eletrônicos cresce continuamente no Brasil, com salto de 500 mil usuários em 2018 para 2,9 milhões no ano passado.
Outro levantamento mostra que o consumo desses produtos é maior entre os jovens de 18 a 24 em comparação com outras faixas etárias: 24% disseram que utilizam ou já experimentaram os chamados vapes. A prevalência é muito mais alta que a do cigarro convencional, de apenas 9% entre esta população, de acordo com pesquisa Covitel.
Segundo Martins, estudos sólidos comprovam que as doenças relacionadas ao consumo desses produtos estão surgindo cada vez mais precocemente. “Nós estamos vendo o aparecimento de fibrose de pulmonar em adolescentes com 5 anos de uso do cigarro eletrônico. É algo que a gente observa em fumantes com 40 anos [de uso do cigarro convencional]”, afirma a médica.
A liberação desses dispositivos pela Anvisa, de acordo com a especialista do Incor, iria na contramão dos princípios da prevenção e da precaução que regem a saúde pública no Brasil.
A própria OMS (Organização Mundial da Saúde) já emitiu alerta sobre o risco dos cigarros eletrônicos contribuírem para a formação de uma nova geração de fumantes, enquanto o consumo de tabaco está em queda no mundo. O órgão também rechaça o argumento da indústria de que os aparelhos seriam uma alternativa para fumantes que querem abandonar o cigarro comum.
Representadas pela Abifumo (Associação Brasileira da Indústria do Fumo), as principais empresas produtoras de tabaco no Brasil também participaram da consulta pública, apresentando argumentos favoráveis à regulamentação desses produtos.
Segundo Lauro Anhezini Júnior, conselheiro da entidade e chefe de relações científicas e regulatórias da BAT Brasil (antiga Souza Cruz), novos estudos que classificam os cigarros eletrônicos como alternativa de menor risco para fumantes foram enviados à Anvisa. Entre eles, cita revisão científica da King’s College de Londres, segundo a qual os DEFs são 95% menos nocivos que o tabaco.
O conselheiro da Abifumo pondera que os dispositivos não são isentos de risco, e que, portanto, o seu consumo não deve ser incentivado por pessoas que não fumam. Por outro lado, sustenta que diferentes estudos e experiências internacionais demonstram eficácia na redução do consumo do cigarro convencional.
“Esses países todos têm regras, inclusive algumas delas que estão agora sofrendo ajustes, mas nenhum deles cogita a proibição completa da categoria de cigarros eletrônicos”, diz o conselheiro, mencionando Estados Unidos e Nova Zelândia entre as referências. “A proibição que existe hoje no Brasil não é suficiente para endereçar as preocupações de saúde pública”, acrescenta.
Para Anhezini, uma regulamentação adequada deve limitar os níveis de nicotina e criar regras para tirar do mercado produtos voltados a menores de 18 anos, proibindo essências adocicadas, por exemplo, e controlando o design e comunicação para que não sejam apelativos a esta população.
A análise pela Anvisa ocorre em paralelo à tramitação de projeto de lei no Senado que propõe regulamentação dos cigarros eletrônicos. A proposta, de autoria da senadora Soraya Thronicke (Podemos), prevê uma série de exigências para a fabricação, importação e comercialização dos produtos, além de multa pela venda a menores de 18 anos. Se aprovada, na prática, a legislação pode derrubar a proibição pela agência reguladora.
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