Como o Brasil tem clínica de bronzeamento se é proibido?
Clínicas de estética em todo o país seguem oferecendo o bronzeamento artificial com câmaras de radiação ultravioleta [[{“value”:”
SÃO PAULO, SP (UOL/FOLHAPRESS) – Apesar de ser proibido pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) por risco de câncer há mais de 15 anos, o bronzeamento artificial ainda ocorre no Brasil, e ganha impulso com liminares conseguidas por advogados especializados no “mercado do bronze”.
CONSULTORIAS PARA IR À JUSTIÇA
Clínicas de estética em todo o país seguem oferecendo o bronzeamento artificial com câmaras de radiação ultravioleta, amparadas por decisões liminares. O UOL identificou advogados e escritórios especializados que atuam abertamente na legalização judicial da prática, promovendo seus serviços nas redes sociais, em sites profissionais e por meio de campanhas direcionadas a clínicas e estúdios de estética.
Advogados oferecem consultoria completa para clínicas que desejam operar, mesmo em desacordo com as normas da Anvisa. A RDC (Resolução da Diretoria Colegiada) nº 56/2009 proíbe desde 2009 o uso de câmaras de bronzeamento artificial com radiação ultravioleta para fins estéticos no Brasil.
Nos sites, os serviços jurídicos são apresentados com promessas de legalidade e rapidez. As ofertas incluem slogans como “funcionamento 100% legal”, “liberação via liminar em até 30 dias” e até acesso a livros eletrônicos com “manuais passo a passo”, videoaulas e modelos de petições para facilitar a judicialização do serviço.
Um dos advogados que atua no “mercado do bronze” disse ao UOL ter demanda em todo o Brasil. “Hoje é difícil mensurar, mas seguramente já superamos a quantia de mil autorizações em todo o território nacional”, afirma. Segundo ele, entre os estados com maior volume de clientes estão São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Ele argumenta que a proibição é baseada em uma resolução “inconclusiva”, que desconsidera os avanços tecnológicos dos novos equipamentos.
Outra advogada que também atua no setor afirma que o respaldo jurídico das clínicas está ancorado em decisões favoráveis já proferidas em São Paulo e em Goiás. Segundo ela, a prática deve ser analisada com “bom senso jurídico e técnico”, e não com base em uma generalização de riscos. “Assim como o sol pode queimar, a máquina também. A diferença está no uso consciente e nos limites técnicos”, afirmou. Em seu site, a advogada usa expressões como “legaliza bronze” e oferece o serviço para “evitar problemas com a vigilância sanitária”.
Os advogados geralmente argumentam que uma resolução da Anvisa não tem força para restringir uma atividade econômica permitida no CNAE (Código Nacional de Atividades Econômicas). A judicialização recorre a princípios constitucionais como a liberdade de iniciativa (artigo 170) e o princípio da legalidade (artigo 5º) para contestar a validade da proibição. Na prática, formou-se um segmento jurídico que viabiliza o funcionamento de clínicas por meio de decisões liminares individuais, apesar da proibição sanitária em vigor.
Essas autorizações têm sido utilizadas como respaldo para a oferta do serviço, frequentemente promovido com apelo comercial e a promessa de segurança. Em alguns casos, clínicas exibem cópias das decisões em quadros na recepção ou em publicações nas redes sociais, indicando a obtenção de liminares para tranquilizar os clientes -ainda que os equipamentos utilizados permaneçam irregulares do ponto de vista da vigilância sanitária federal. A Anvisa afirma que essas decisões não anulam a regra nacional e que continua atuando para proteger a saúde da população.
LEIS LOCAIS
A ofensiva pela liberação do bronzeamento artificial também chegou ao Legislativo em alguns estados e municípios. Além da judicialização individual dos casos, projetos de lei que buscam autorizar o uso de câmaras de radiação ultravioleta têm ganhado espaço.
Um dos casos mais emblemáticos ocorreu no Rio, onde a Câmara Municipal aprovou, em outubro de 2024, o Projeto de Lei Complementar nº 180/2024. A proposta alterava uma lei anterior que tratava da emissão de alvarás para clínicas de estética (Lei Complementar nº 268/2023) e incluía um novo artigo permitindo o uso das câmaras de bronzeamento artificial. Na prática, era uma tentativa de legalizar, no âmbito municipal, algo que é proibido por norma federal. O prefeito Eduardo Paes (PSD) vetou integralmente a medida, alegando vício de constitucionalidade e o fato de o projeto ir contra determinação da agência reguladora.
O QUE DIZ A AGÊNCIA
A Anvisa considera o bronzeamento artificial com radiação UV (ultravioleta) um risco sanitário grave e cancerígeno. A prática está proibida no Brasil com base em estudos da Iarc (Agência Internacional de Pesquisa em Câncer) e da OMS, que classificam a radiação UV como carcinogênica para humanos -grupo 1, a mesma categoria do tabaco e do amianto.
Segundo a Anvisa, “não existem valores seguros de irradiação UV para fins estéticos”, e os benefícios alegados pelo setor não compensam os riscos sanitários envolvidos. Nenhuma máquina está regularizada no Brasil para esse fim, e o uso caracteriza infração à legislação sanitária federal.
“Todos os equipamentos com essa finalidade são considerados irregulares”, afirma a Anvisa. A agência também informou ao UOL que está tomando medidas legais contra leis estaduais e municipais que tentam liberar a prática, como ocorreu no Rio de Janeiro.
LIMINARES ESTÃO ACIMA DA REGRA DA ANVISA?
A resolução nº 56/2009 da Anvisa tem força normativa suficiente para proibir a atividade econômica em todo o território nacional, diz o advogado Ilmar Muniz, especialista em direito penal e constitucional. “A Anvisa é uma autarquia com competência legal para editar normas técnicas com caráter vinculante. O descumprimento da RDC configura infração sanitária e pode levar a sanções administrativas e penais.”
A atuação de advogados que conseguem liminares não é ilícita, mas pode ultrapassar os limites éticos, na opinião de Muniz. “A oferta sistemática de liminares para liberar uma prática proibida por norma sanitária pode configurar mercantilização da Justiça. A OAB já se posicionou, em casos semelhantes, contra esse tipo de conduta.”
Decisões judiciais isoladas que suspendem normas sanitárias fragilizam a autoridade técnica da Anvisa, diz Muniz. “Agências reguladoras existem para aplicar conhecimento científico e proteger a coletividade. Quando juízes desconsideram esses dados, há desequilíbrio institucional e risco à efetividade das políticas públicas.”
Há um risco sério de banalização das decisões liminares e de comprometimento da credibilidade do sistema de Justiça.
Ilmar Muniz
A busca do Judiciário para contestar a norma da Anvisa é legítima, na opinião do professor Lucas Bittencourt e Xavier, constitucionalista da Uniarnaldo Centro Universitário, em Belo Horizonte. “Não vejo isso como uma distorção do sistema de Justiça.”
O acúmulo de decisões judiciais pode gerar efeitos indiretos, diz Xavier. “Se começarmos a formar jurisprudência sobre o tema, isso naturalmente enfraquece a norma perante o Judiciário e a sociedade.”
Os advogados estão dentro da legalidade, na opinião do professor. “Quando falamos do direito, sempre existe mais de um ponto de vista sobre o mesmo caso. Os advogados que atuam nessa área se baseiam em garantias constitucionais como a liberdade econômica e profissional -e isso, por si só, já torna viável a sustentação da tese em juízo.”
Procurada pelo UOL, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) federal preferiu não se manifestar.
O QUE DIZEM OS MÉDICOS
A SBD (Sociedade Brasileira de Dermatologia) classifica como “grave retrocesso sanitário” a tentativa de liberar o bronzeamento artificial por meio de leis ou decisões judiciais. Para a entidade, a prática é responsável por agravar o risco de câncer de pele e compromete anos de avanço em políticas públicas de prevenção.
A exposição precoce à radiação UV, segundo a SBD, aumenta em até 75% o risco de melanoma em pessoas com menos de 35 anos. Segundo dados do Inca (Instituto Nacional de Câncer), órgão ligado ao Ministério da Saúde, o Brasil registra mais de 220 mil casos de câncer de pele não melanoma por ano, além de 9 mil casos de melanoma -o tipo mais agressivo. “Não existe bronzeamento artificial seguro”, afirma o dermatologista José Roberto Fraga Filho, da SBD.
O presidente da entidade, Carlos Barcaui, critica as tentativas de flexibilização da norma e alerta para os riscos coletivos. “Que sigamos sendo reconhecidos pelo protagonismo em banir câmaras de bronzeamento e não por retrocessos que, em prol de interesses estéticos e financeiros, comprometem a saúde da população.”
MORTE DE JOVEM ACENDE ALERTA
A morte da jovem Gabrielle Cristine Hipólito, 18, após uma sessão de bronzeamento em Governador Valadares (MG), reacendeu o debate sobre a legalidade do uso de câmaras com emissão de radiação ultravioleta em clínicas estéticas. Gabrielle foi internada com dificuldades respiratórias e desidratação severa dois dias após a sessão, e morreu no hospital em 13 de março. A Polícia Civil de Minas Gerais investiga o caso e se há responsabilidade criminal da clínica ou do profissional envolvido.
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