Decisão da família é soberana na hora de doar órgãos, mesmo que o paciente tenha deixado a vontade registrada
No Brasil, a doação de órgãos só é possível com o consentimento da família [[{“value”:”
GABRIEL ALVES
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A artista plástica e empresária Maristela Pastro, 61, sempre se achou meio fraquinha e se sentia cansada com alguma facilidade. Achava que era algo seu, constitutivo. Mas com o tempo essa fraqueza se agravou. O pulmão não estava dando mais conta da demanda do corpo. Demorou para entender os impactos da artrite reumatoide, uma doença autoimune, que passou também a afetar o órgão.
“Eu fui piorando, precisei de oxigênio. Ficava em casa, com três concentradores [dispositivo que reúne, concentra e fornece oxigênio da atmosfera para o paciente] e com uma mangueira de sete metros, para eu conseguir circular pelo apartamento. Comecei a ter que usar cadeira de roda. Aí vi que eu não tinha mais opção. Ou entrava para a fila de transplante ou não ia viver muito tempo.”
A notícia da chegada do novo pulmão veio no dia 13 de maio, e o transplante aconteceu na madrugada do dia seguinte, no Hospital Sírio-Libanês. “Eu tive essa oportunidade somente porque alguém, alguma família fez essa doação. Então, só tenho a agradecer.”
No Brasil, a doação de órgãos só é possível com o consentimento da família, como explica Suelen Stopa Martins, nefrologista pediátrica e coordenadora da Organização de Procura de Órgãos (OPO) do Hospital São Paulo.
A lei 9.434, de 1997, trazia o conceito de doação presumida, no qual, caso a pessoa não quisesse doar, ela deveria manifestar isso em algum documento oficial. Mas, desde 2001, por meio da lei 10.211, adota-se o conceito de doação consentida, que depende do aceite familiar.
Mesmo que a pessoa tenha expressado em vida o desejo de ser doadora, é a família que toma a decisão final após o momento do diagnóstico de morte encefálica. Nesse estágio, embora órgãos como os rins, o coração e os pulmões ainda estejam funcionando, o cérebro já não pode mais se recuperar.
Legalmente, isso é considerado morte, mas, para os familiares, é um instante em que a aparência de vida do corpo pode causar confusão. Por isso, o processo segue um protocolo rigoroso: dois médicos habilitados realizam o diagnóstico em momentos distintos, para não haver dúvidas sobre a irreversibilidade da condição.
Fabrício Calil, enfermeiro que coordenada o serviço de transplantes do Sírio-Libanês, ressalta que a comunicação nesse momento exige uma abordagem cuidadosa, pois muitas famílias não compreendem imediatamente a situação.
“Quando você vai acolher a família, algumas vezes eles perguntam: ‘Mas ele está morto mesmo? Porque eu estou vendo o coração bater, ele ainda está quentinho’. Quando isso acontece, você percebe que a comunicação entre a equipe médica e os familiares não está ocorrendo da maneira como deveria”, conta.
A morte encefálica é compulsoriamente notificada, e a OPO responsável pela região na qual se situa o hospital recebe o alerta. Cabe aos representantes da OPO conversar com a família sobre a possibilidade de doação, explicam Martins e Calil.
Segundo a ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos), 45% das não concretizações de doações entre janeiro e junho deste ano (1.805) se deram justamente por causa da recusa familiar. O valor é superior à média anual entre 2016 e 2023, de 42,1%.
“As ações de conscientização precisam fazer as pessoas falarem sobre a doação de órgãos em vida, para que a família saiba da vontade. É essa conversa que faz a diferença no momento decisivo”, diz Martins.
Calil explica que a posição da família é tão central nesse momento que ela pode até mesmo contrariar o desejo do doador, seja no sentido de doar ou não doar os órgãos.
“Agora existe um sistema de registro de intenção de doação de órgãos [a AEDO, Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos], no qual as pessoas podem declarar que desejam ser doadoras. Mas mesmo com isso é a família quem decide no final”, afirma.
Além de motivos religiosos, outro fator de recusa é o receio de que o corpo ficaria desfigurado para o velório. No entanto, isso não ocorre, pois mesmo na doação de ossos e pele, a equipe responsável pela coleta deve entregar o corpo íntegro.
Para Martins, é preciso constantemente educar a população a respeito. “Precisamos falar sobre doação o ano inteiro, e não apenas em setembro [mês de conscientização]. O programa de transplantes no Brasil é motivo de orgulho. Ele é idôneo, transparente, e o paciente consegue até acompanhar de casa a lista.”
André Nathan, pneumologista do Sírio-Libanês que acompanhou Maristela, relata que o tempo de espera por um pulmão pode ser de um ano ou mais. “Alguns pacientes, como Maristela, pioram muito enquanto aguardam, por isso ela precisou ser priorizada na fila.”
Para ele, outra questão importante é a estrutura hospitalar. “Muitas vezes não se consegue manter os órgãos em condições ideais para a doação. Acontece de o pulmão ou o coração não estarem funcionando bem o suficiente para serem transplantados.” Felizmente, no caso de Maristela deu tudo certo.
Ela, paranaense que se radicou no Mato Grosso, continua em São Paulo para realizar o acompanhamento pós-transplante. Observa a saturação do sangue (quantidade de oxigênio) com um oxímetro e já voltou a tomar banho sem se cansar e a cozinhar, uma das atividades de que mais sentia falta. “Queria muito comer minha própria comida: canjiquinha, feijoada, bucho… só não faço risoto porque meu marido não gosta (risos).”
Sobre o aceite familiar para doação, um dos maiores gargalos para transplantes de órgãos, Maristela diz faltar conscientização.
“Eu acho que tem que ser mais bem explicado para as pessoas em que momento é tirado o órgão, que é só depois da morte cerebral, para a pessoa não ter medo na hora de decidir doar. Tem que saber que ali é morte mesmo, que você não vai viver mais, mas que você vai fazer muitas pessoas viverem. Eu estou aqui hoje por causa de alguém que foi bom, porque quem doa tem que ser uma pessoa boa, né?”
Como é feito o diagnóstico de morte encefálica
EXAMES CLÍNICOS
Como é feito o diagnóstico de morte encefálica
EXAMES CLÍNICOS
Reflexo pupilar: Verifica a ausência de resposta à luz (pupilas não reagem)
Reflexo córneo-palpebral: Toque na córnea não provoca o fechamento das pálpebras
Reflexo de tosse: Ausência de reflexo ao estímulo nas vias respiratórias
Teste de apneia: Desconecta o paciente do ventilador para observar se há qualquer esforço respiratório. O aumento de CO₂ não desencadeia respiração espontânea
Prova calórica (reflexo óculo-vestibular): Água fria é introduzida no canal auditivo. Em pacientes com morte encefálica, não há movimento ocular (nistagmo)
TESTES COMPLEMENTARES
Eletroencefalograma: Mostra ausência de atividade elétrica no cérebro
Doppler transcraniano: Atesta falta de fluxo sanguíneo cerebral
REQUISITOS PARA O DIAGNÓSTICO
Documentação completa no prontuário
Dois exames clínicos, feitos por médicos diferentes
Testes realizados por médicos capacitados
Intervalo mínimo entre os dois exames: pacientes cima de 2 anos de idade, 1 hora; pacientes de 2 meses a 2 anos de idade, 12 horas; pacientes de 7 dias a 2 meses, 24 horas
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