Destruição da Amazônia é fruto de organização criminosa, diz delegado Saraiva
Veja trechos da entrevista com o delegado Alexandre Saraiva
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Uma imersão no combate ao crime ambiental e nas suas ramificações pela máquina estatal. Assim é “Selva: Madeireiros, Garimpeiros e Corruptos na Amazônia Sem Lei”, livro que reconstitui a trajetória do delegado Alexandre Saraiva nos dez anos em que foi superintendente da Polícia Federal em Roraima, Maranhão e Amazonas.
“Coloquei no livro aquilo que eu posso provar por A mais B. Evitei ilações. Deixei isso para o leitor”, afirma Saraiva em entrevista à Folha sobre a publicação, que chegas às livrarias nesta primeira semana de abril.
Organizada na forma de um thriller, a narrativa percorre 17 operações da PF, acompanhando o raciocínio de quem persegue o bandido. O relato, no entanto, começa pelo desfecho, o embate de Saraiva com o então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, em 2021, que levou ambos a perderem os seus cargos.
No meio da divergência estavam 226 mil m3 de madeira ilegal, reunidos na operação Handroanthus. Foi a maior apreensão do gênero na história, com volume suficiente de toras para encher 7.500 caminhões.
Salles insistia que se tratava de produto legal. Saraiva reuniu provas para denunciar o ministro por ser suspeito de fazer parte de uma organização criminosa. Entre os detalhes do livro está o bastidor de como, no meio daquela queda de braço, os militares abandonaram a operação repentinamente.
“O que as Forças Armadas fizeram ali, eu, com dez anos de Amazônia, não tinha visto”, diz o delegado, que foi transferido para Volta Redonda (RJ) após o episódio. Nas últimas eleições, tentou eleger-se deputado federal pelo PSB do Rio de Janeiro.
O inesperado para leitores, no entanto, está nas sutilezas dos relatos que vão interligando, ao longo dos capítulos, a destruição ambiental, não com o vilão de sempre, o agronegócio, mas com o crime organizado, em suas piores facetas.
“A destruição da Amazônia não acontece da forma e pelos motivos que o senso comum nos faz acreditar”, diz Saraiva. “Há bastante tempo, ela é promovida por uma organização criminosa sofisticadíssima, com tentáculos no governos estaduais e federal e até no exterior. Tem máfia italiana.” Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
PERGUNTA – O livro traz detalhes novos de alguns fatos já conhecidos. Falo, por exemplo, do caso do Exército na Operação Handroanthus, que primeiro tentou puxar para si o mérito da maior apreensão de madeira da história, e depois disse que não tinha como remover as toras e ainda chamou de volta o efetivo que fazia a segurança da carga. Mas as razões não estão no livro. O sr. nunca descobriu quais foram?
ALEXANDRE SARAIVA – Eu coloquei no livro aquilo que eu posso provar por A mais B. Evitei ilações. Deixei isso para o leitor. Eu acho que as pessoas inteligentes que se interessam pela leitura vão ver que tem um momento em que a chave vira.
O filho que era bonito, de repente se tornou indesejado, e todo mundo queria sair o mais rápido possível de perto daquela apreensão.
Eu já tinha trabalhado com as Forças Armadas e tive excelentes experiências com o Exército. O que as Forças Armadas fizeram ali, eu, com dez anos de Amazônia, não tinha visto. Abandonaram a Polícia Federal no meio de um ambiente extremamente hostil, seja do ponto de vista da floresta, seja do ponto de vista do tipo de criminoso que estava ali.
Houve uma reunião no Conselho da Amazônia. Me perguntaram o que faríamos com a madeira e eu falei que tinha uma solução bonita e uma feia. Eu preferia retirar a madeira e utilizar em obras de infraestrutura para a população carente.
Só quem tinha estrutura para retirar era o Exército. Todo mundo concordou. Saí de lá achando que o problema estava resolvido. Eu estou acostumado a lidar com pessoas que cumprem com a palavra dada.
Mas veio uma reunião do Comando Militar da Amazônia, e falaram que, depois de uns cálculos, viram que, para tirar toda a madeira, levariam dez anos. Eu não aguentei. Virei e falei: “Os senhores perdoem a franqueza, mas não é possível que aqueles criminosos semianalfabetos façam isso em dois meses e o Exército leve dez anos”.
P – Ninguém pensou em recorrer ao vice-presidente Mourão, que era coordenador do Conselho Nacional da Amazônia Legal?
AS – Mourão estava na reunião que decidiu. Se dependesse dele, acontecia. Numa ligação para o Comando do Norte, eu lembrei que tinha sido combinado com o general Mourão, e a resposta foi que o Conselho da Amazônia era um canal político. Pela via hierárquica não tinham nenhuma ordem.
P – No fim, prevaleceu a solução feia, a madeira foi abandonada, mas vocês inseriram hastes de metal nas toras, na tentativa de impedir o processamento. Chegou a saber o destino final daquela apreensão gigante?
AS – Olha, eu queria ser uma mosquinha para ver quando colocaram a madeira na serra. Todos os testes de fizemos mostraram que serra quebrava.
Mas por que eu cheguei nesse ponto? Porque eu senti que ia perder a parada. Era o Exército pulando fora, era a entrevista do Ricardo Salles n’O Estado de S.Paulo [dizendo que a PF estaria criando uma situação de instabilidade jurídica e que as madeireiras iriam quebrar]. Você começa a ver que está ficando abandonado. Então, eu pensei: “Posso até perder, mas eles não vão ganhar”.
P – Na questão da entrevista, o sr. reagiu respondendo na Folha de S.Paulo. No livro, o sr. menciona que sempre tentou falar com todos e ser um técnico, porque isso lhe garantia o cargo para fazer as operações que combatiam o crime. Nessa resposta pela imprensa o sr. foi técnico ou emocional?
AS – Fui ambos. O Salles questionou uma operação policial em andamento, e eu tinha 50 homens e mulheres no meio da selva trabalhando duro, em um ambiente precário. Perderia toda a liderança se eu não desse uma resposta contundente. Esse foi o primeiro ponto.
O segundo ponto foi mostrar que existia resistência dentro da burocracia estatal.
Enquanto Salles estava dando entrevistas absolutamente inconvenientes, para dizer o mínimo, eu não tinha materialidade, especialmente se tratando de um ministro. Mas quando ele vai no local da apreensão, se reúne com os criminosos, organiza uma estratégia para burlar a fiscalização, ultrapassou a linha, e eu fiz o que tinha que ser feito.
Mandei a notícia crime [contra Ricardo Salles] para o STF. Eu fui muito conservador. Se voltasse no tempo, tinha colocado mais gente. Aconteceram coisas depois e dúvidas se tornaram certezas.
P – O sr. não diz no livro, mas a gente fica com a sensação, no conjunto da obra, que o Estado, no governo Bolsonaro, estava facilitando o crime ambiental na Amazônia. Isso é impressão de leitora ou havia algo estranho?
AS – Havia, sim. Me trocar como superintendente, naquele momento [abril de 2021], já foi estranho. Na sequência, tiraram o delegado Franco Perazzoni de outra operação, o delegado Rubens Lopes, que também trabalhou na operação, e Thiago Leão, que ficou no meu lugar no inquérito.
Chegamos a nos perguntar em quem a gente tinha esbarrado nesse esquema de madeira para ter essa reação. Nunca tinha visto uma organização criminosa derrubar um superintendente da PF. Isso não tem precedente. Como não tem precedente a virulência, o ódio, o rancor persecutório que existem até hoje.
Vou dizer uma coisa que não falei publicamente antes: tem ainda um bolsão, uma célula bolsonarista, na Polícia Federal, e numa posição estratégica.
O corregedor-geral foi indicado pelo governo Bolsonaro e tem mandato. Isso, de certa forma, mantém o controle disciplinar sob boa parte do efetivo. Isso é um problema na Polícia Federal -pelo menos é um grande problema para mim. Meus procedimentos disciplinares ainda estão lá. Não se encerram nunca. Criaram um tribunal de exceção inédito. Foram dezenas de procedimentos.
Na corregedoria do Rio de Janeiro, estado em eu trabalho hoje, os pareceres foram unânimes pelo arquivamento, por inexistência de falta disciplinar.
P – O governo Bolsonaro elevou as deficiências na questão ambiental a um ápice, mas os problemas são anteriores, não? O livro detalha que a política, o Judiciário, a economia e a estrutura dos órgãos ambientais estão entrelaçados com o crime comum.
AS – É exatamente isso. A destruição da Amazônia não acontece da forma e pelos motivos que o senso comum nos faz acreditar. A gente ainda está com a mentalidade da década de 1980. Desmatamento, soja. Desmatamento, gado. Não é mais assim. Eu repito isso, mas as pessoas querem botar a culpa no agronegócio de qualquer jeito.
Eu não acho o agronegócio inocente, mas a gente tem que saber onde está a questão. Depois das operações que a gente fazia para combater extração de madeira, ocorria redução drástica de desmatamento no monitoramento do Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais]. A relação entre negócio com a madeira e desmatamento fica claro quando a gente faz análise científica.
Essa madeira está financiando políticos em Brasília. Eu vi. Entrei na prestação de contas. Tinha investigado meu doando para político que o defendia no Ministério da Justiça. Um governador de Roraima fez lei proibindo a destruição de balsas de garimpo, que só serve para o crime. É como fazer uma lei proibindo a destruição de laboratório de cocaína. Isso era motivo para afastamento automático, mas na nossa cultura, crime ambiental ainda é um crime menor.
P – O sr. fala sobre várias operações de madeira, mas a violência escala no livro quando fala do ouro. Inclusive é o capítulo que mostra a importância do indigenista Bruno Pereira. O crime de garimpo é mais violento ou é aquela região em particular, o Vale do Javari?
AS – Tem violência na madeira, mas o ouro é como se fosse dinheiro vivo. É difícil alguém assaltar uma balsa de madeira para roubar a madeira do ladrão de madeira. Com o ouro é diferente. Se conseguir pegar, o lucro é muito alto e rápido.
O Bruno alertou sobre a invasão das balsas dos garimpeiros e para um desastre ambiental terrível, com o derrame de mercúrio na região. Não sei como vão resolver aquilo.
O ponto é que quando falam em organização criminosa, a gente tende a pensar em armas de fogo e drogas, mas elas atuam fortemente no crime ambiental. Organização criminosa vai aonde tem dinheiro fácil. Há bastante tempo, a destruição da Amazônia é promovida por uma organização criminosa sofisticadíssima, com tentáculos no governos estaduais e federal e até no exterior. Tem máfia italiana.
Aqui no Brasil, só o Supremo Tribunal Federal tem estatura institucional para encarar essa organização criminosa. A sociedade precisa ter consciência do que está acontecendo. O desafio da geração atual, e eu diria, o legado da nossa geração, é a preservação da Amazônia.
SELVA: MADEIREIROS, GARIMPEIROS E CORRUPTOS NA AMAZÔNIA SEM LEI
Preço R$ 59,90 (256 págs.); R$ 29,90 (e-book)
Autor Alexandre Saraiva; Manoela Sawitzki
Editora História RealRAIO-X Alexandre Saraiva, 53
Nascido em São Gonçalo (RJ), é formado em direito pela UFF (Universidade Federal Fluminense), com doutorado em ciências do ambiente e sustentabilidade na Amazônia pela Ufam (Universidade Federal do Amazonas). É delegado da Polícia Federal há 19 anos. De 2011 a 2021, foi superintendente regional em três estados da Amazônia Legal (Roraima, Maranhão e Amazonas).